Autor: Eurípides

Estreou no Espaço Cultural Sergio Porto em 2002 ficando, depois, um ano em cartaz no Teatro Maria Clara Machado (Planetário). Em 2004, foi apresentado nos Sescs de São João de Meriti e Campos e também integrou o Palco Giratório, apresentando-se em Florianópolis (SC), Brasília (DF) e mais nove cidades do Paraná. Participou do Festival Internacional de São José do Rio Preto e do Fenart João Pessoa (PB).

Explorando as fronteiras entre o épico e o dramático, Medeia conta a história de uma mulher preterida por seu marido, que escolhe uma nova esposa. Não se conformando com a situação, Medeia se vinga de Jasão matando a noiva e o sogro dele e, para atingi-lo mais profundamente, mata seus próprios filhos, punindo o marido infiel no ponto mais caro para os gregos: sua posteridade.

Essa tragédia coloca em questão os direitos de homens e mulheres uns em relação aos outros, os limites do desejo que um longo casamento impõe e as relações entre uma ordem constituída e os que a ela não pertencem, nesse caso, a ordem clássica e a bárbara.

Elenco:

Alexandre Dantas
Ana Alkmim
Cristine A’Gape
Cybele Jácome
Fernanda Maia
Luisa Baratz
Mariana Oliveira
Viviana Rocha

Ficha Técnica:

Autor: Eurípides
Direção: Antonio Guedes
Adaptação: Fátima Saadi e Antonio Guedes
Dramaturgia: Fátima Saadi
Direção de movimento: Helena Varvaki
Cenário: Doris Rollemberg
Figurinos: Mauro Leite
Música: Paula Leal
Iluminação: Binho Schaefer
Assistente de direção: Joana Lebreiro

Crítica

Nós, só vemos morte (Nota sobre Medéia)
Flora Süssekind* – Folhetim • 24 – jul-dez de 2006

A Medéia do Teatro do Pequeno Gesto termina com uma contradição. Com a in­tromissão, enquanto a ação se encerra, de um rastro nietzschiano na fala final do corifeu. Nietzsche passa, então, a falar “pela boca de Eurípides”, tomando como máscara justamente a daquele que, se­gundo a sua análise em O nascimento da tragédia, “combateu e venceu a tragédia antiga”, daquele que se teria servido dela, “morta sob suas mãos brutais”, como de um moribundo a quem se obrigaria a “prestar mais uma vez serviço”. E cujo drama “não-dionisíaco”, cujo “epos dra­matizado” se mostraria, a seu ver, incapaz de alcançar “o efeito trágico”. E não é à toa que se esco­lhe exatamente o desfecho da peça para essa intromissão pro­positada de uma dissonância conflituosa, para a substituição das últimas palavras do corifeu por trechos extraídos de Nietzsche e Rilke.

É claro que ainda ecoa, na versão do Teatro do Pequeno Gesto, a “repetição triste, que serve de conclusão a inúmeras peças de Eurípides, de que, se são os homens que se lan­çam em suas infelicidades, ninguém é, no entanto, senhor ab­soluto de sua sina. Cabendo aos acontecimentos, às paixões, aos imprevistos (felizes ou não) conduzi-los, inabalavelmente, à sua fortuna. Não se trata mais, porém, na tragédia euripidiana, de reafirmar, como em Ésquilo, a força da justiça divina. São, ao contrário, as “flutuações de uma sorte que já não tem senti­do que parecem determinar, nesse teatro, as formas do des­tino. E que parecem barrar, também, implacavelmente, “o sentimento” de que o próprio devir possa ter, ele mesmo, “um sentido”.

Tomado ao pé da letra o texto de Eurípides, o que se desta­ca, no momento final da peça, é, então, o inesperado, são as sur­presas que desafiam nossas suposições e que se intrometem, ne­cessariamente, no curso dos acontecimentos. Na adaptação, de 2002, realizada por Fátima Saadi e Antonio Guedes, mantém-se a ênfase no acaso. Mas é, na verdade, a dor de existir o que domi­na, aí, nas últimas palavras do corifeu, marcadas pela afirmação da transitoriedade da vida, pela certeza de que, se “o delito maior do homem é ter nascido”, ninguém pode mesmo ser feliz. E a série euripidiana de conclusões praticamente idênticas (as de Alceste, de Medéia, de Andrômaca, de Helena e de As bacantes) se vê, desse modo, alterada suave, mas significativamente.

Talvez valha a pena, então, para efeito de contraste, uma enumeração. E a repetição, em traduções diversas, desses fi­nais. “Muitas formas revestem deuses-demos. / Muito cumprem à contra-espera os numes. / Não vigora o previsto. / O poro do imprevisto o deus o encontra. / Este ato assim conclui”. Assim se encerra o texto de As bacantes na tradução de Trajano Vieira. “Espíritos manifestam-se sob as mais diversas formas / E muitas coisas estranhas nos proporciona o céu. / Muito do que se espera nunca sucede. / E o que nos assombra realiza-se com a ajuda dos deuses. / Assim finda esta ação”. São estas as últimas palavras do coro em Alceste. O final de Helena se­gue na mesma direção: “Variam as feições dos espíritos / e muitas das coisas vindas do deus contrariam nossos cálculos: / o que se buscava não se realiza, / enquanto os Céus encontram meios para o que não esperávamos; / Ajusta-se, assim, este ato”. Palavras que parecem repercutir, ainda, na fala final de Andrômaca: “Muitas as formas dos seres celestiais / e muito do que deles vem contradiz nossas esperanças. / Aquilo que pensávamos viria a ser não se consuma, / enquanto para o inesperado acha o deus uma via. / Põe-se, dessa maneira, fim a esta obra”.

Finais semelhantes a que se poderia acrescentar também o de Medéia. Lembre-se, nesse sentido, a última fala do texto de acordo com a tradução de Mário da Gama Kury: “Dos pín­caros do Olimpo Zeus dirige / o curso dos eventos incontáveis / e muitas vezes os deuses nos deixam / atônitos na realização / de seus desígnios. Não se concretiza / a expectativa e vemos afinal / o inesperado. Assim termina o drama”. Contraste-se com esta versão a bela transformação de Fátima Saadi e Anto­nio Guedes dessa intervenção final do corifeu:

Miserável raça dos homens, filhos do acaso e da dor! Por que que­rer ouvir o que não trará nenhum proveito? O maior bem nunca se poderá alcançar: é não ter nascido, não ser, não ser nada. (Pausa) Ninguém é feliz. (Pausa) Mas nós espectadores em tudo e sempre, ordenamos que tudo se desfaça. Por ora, basta! (Pausa) As coisas passam… e nós mesmos passamos.

As diferenças são perceptíveis. E os responsáveis pela adaptação se encarregaram de avisar, em nota à edição de sua Medéia, quais foram os empréstimos utilizados na composição deste desfecho. As indicações são propositadamente precisas. E apontam para a conversa, na terceira seção de O nascimento da tragédia, de Midas e Sileno sobre “a melhor coisa para o homem” (i.é: não ter nascido) e para a “Oitava Elegia de Duíno” (com seus ecos nietzschianos) como fontes da versão adotada por eles para as palavras finais da peça. Deixando bem claro, desse modo, quem fala ai “pela boca de Eurípides”. Como se não quisessem deixar margem à dúvida de que o conflito discursivo, explicitado no encerramento, é algo a ser registra­do com atenção. E cabendo a essa dissonância a indicação de uma situação adicional de disputa, de uma cena potencial de agôn, envolvendo, como oponentes, não mais Medéia e Jasão, mas Nietzsche e Eurípides.

A exposição da tragédia euripidiana a essa oposição no seu desfecho se deve, em parte, à possibilidade quase imedia­ta de detecção que uma intromissão discursiva em tal contexto permite (principalmente em se tratando de um conjunto de versos finais repetidos em várias peças). Mas dialoga igual­mente com um dos elementos mais agudos da crítica de Nietzsche a Eurípides. Crítica aos desfechos euripidianos já presente na Poética aristotélica: “os desenlaces devem resul­tar da própria estrutura do mito, e não do deus ex machina, como acontece na Medéia”. Para Nietzsche, isso derivaria da dissolução da “consideração trágica do mundo”, do declínio da tragédia mítica, evidenciados pela substituição, nos desen­laces, de “uma consolação metafisica por uma consonância terrena”, do mito pelo “deus das máquinas e dos crisóis”. Como na aparição súbita, na versão euripidiana, de um carro flame­jante que tira Medéia de Corinto. “O deus ex machina tomou o lugar do reconforto metafísico”, comentaria Nietzsche.

A “terrível sabedoria” de Sileno, que se intromete na boca do corifeu, no espetáculo de 2002, operaria uma recondução não só dos “temores e horrores do existir”, e do “deleite nasci­do das dores”, ao centro da cena trágica. Mas também do com­panheiro de Sileno, Dionísio, cuja irrupção, no contexto da encenação do texto de Eurípides pelo Teatro do Pequeno Ges­to, parecia se materializar, igualmente, no meio sorriso com que o corifeu (interpretado por Mariana Oliveira) dizia as suas palavras finais.

Esse movimento de contraversão, evidenciado pelos tre­chos extraídos de Nietzsche e Rilke, não se faz presente, no entanto, apenas na dimensão textual da adaptação, num desfe­cho no qual não cabe qualquer deus ex machina. Ou qualquer sinalização em direção à “justiça dos homens”. Pois, à maneira do que observa Beckett no seu ensaio sobre Proust, trata-se aí de outra configuração trágica:

A tragédia é o relato de uma expiação, mas não a expiação insigni­ficante de uma quebra codificada de um acordo local, redigido por patifes para usufruto dos tolos. A figura trágica representa a expia­ção do pecado original, do pecado original e eterno, cometido por ela e por todos os seus socii malorum, o pecado de haver nascido.

Daí a tensão criada pelo meio-sorriso do corifeu em meio às terríveis considerações sobre a condição humana com que se encerra a Medéia do Teatro do Pequeno Gesto.

Antes mesmo de ter início a fala final, entretanto, e logo depois da saída de Medéia, “por uma das extremidades do corredor”, já se figuraria em cena a contraversão operada discursivamente pela intromissão nietzschiana. Pois, quando o corifeu ocupa, no final, o pequeno círculo rotativo (encaixa­do ao grande círculo de madeira que constitui o cenário), pela primeira e única vez, na montagem do Teatro do Pequeno Gesto, “Jasão pega uma das alavancas e começa a girar no sentido oposto àquele que o coro havia seguido ao girar o pequeno círculo durante o espetáculo”. Jasão vai girando cada vez mais rápido, até dar “um grito lancinante” e cair “de joelhos”. Durante esse processo, “as alavancas se arrastam com ruídos de ferros em atrito”. A inversão de direção do movimento rotativo parecendo forçar, ao limite, o maquinismo, e provo­car, desse modo, o ranger de suas peças, ruído que se mistu­raria ao dos gritos desesperados de Jasão.

Nesse palco (girando em direção oposta à de todo o movi­mento de alavancas, ao de todas as rotações circulares do es­petáculo) é que se apresentam as considerações finais. Ditas não apenas com um meio sorriso, mas com um movimento também giratório do rosto da atriz que faz o corifeu, e que se volta, assim, lentamente, para todos os lados, para toda a pla­teia. O que funciona como uma espécie de reafirmação coreográfica de que caberia a todos nós, “espectadores”, “compa­nheiros de infortúnio”, desconforto metafísico idêntico ao ex­presso nesse momento. Movimento giratório e generalizador, apontando, assim, para “uma visão do trágico como um aspec­to fundamental da existência humana, indicativo da irremedi­ável, dolorosa incompatibilidade entre o homem e o mundo em que ele se acha por acaso”. E não para sua visão como algo ligado unicamente a um gênero artístico ou a aspectos característicos desta ou daquela tragédia. Criando-se, assim, tensão evidente com o que a encenação parecia, de certo modo, nos convidar a fazer, entretanto, até aquele momento.

Pois os trajes propositadamente anacronizantes, os mui­tos vasos de barro espalhados pelo espaço cênico, os gestos e posturas corporais (sobretudo do coro) mimetizando represen­tações de cenas teatrais pelas pinturas de vasos áticos, a ma­quilagem, esbranquiçada, figurando máscaras nos rostos dos integrantes do coro, o cenário, constituído de um grande cír­culo de madeira (com outro menor, giratório, no centro), pare­cendo levemente reminiscente do eciclema (a pequena plata­forma rolante na qual se exibiam, na tragédia grega, as cenas mais terríveis), tudo isso evidenciava, na encenação do Teatro do Pequeno Gesto, a vinculação histórica do texto euripidiano escolhido. À qual se contrapunham, porém, no desfecho, um desencanto do mundo, uma compreensão impiedosa da condi­ção humana, que demonstravam, ao mesmo tempo, um “uso estendido do trágico”, visto como “uma dimensão fundamen­tal da experiência humana” e não exclusivamente como manifestação artística ligada ao contexto específico evocado pelos figurinos, pela quase máscara branca com a qual se recobrem os rostos dos coreutas, pelos movimentos marcados, quase “escultóricos” em alguns momentos, lembrando o uso dos braços (nas passagens longas), a padronização gestual (da locução e das emoções) na representação trágica, lembrando as “formas e gestos que não raro adotam os corpos dos heróis (dos atores trágicos) quando estes se defrontam com o fado inevitável”.

É para essa tensão entre o texto euripidiano e uma com­preensão moderna, e alargada, do trágico que chama a aten­ção o final reformulado da Medéia do Teatro do Pequeno Ges­to, no qual se figura, pela contraposição de Nietzsche a Eurípides, uma espécie de disjunção entre um sentimento trá­gico generalizador, “universalmente humano (expresso nas últimas palavras da peça) e a tragédia particular ali encenada.

Nesse sentido se pode dizer que a presença de Nietzsche é tão essencial à montagem do Teatro do Pequeno Gesto quan­to é a de Eurípides na reconstrução nietzschiana do nascimen­to e da história do declínio da tragédia antiga. Assim como em O nascimento da tragédia se compreende a tragédia esquiliana a partir de sua “desfiguração”, a encenação de Eurípides se faz acompanhar do eco de sua crítica por Nietzsche. Essa in­tromissão figura uma distância, um movimento auto-reflexivo, por meio dos quais se contrapõe ao universo trágico de refe­rência o horizonte moderno, evidenciando-se, desta forma, o campo crítico no qual se realiza a encenação.

Se Nietzsche funciona como ponto fundamental de dis­tância, não é, entretanto, o único fator propositado de “desor­dem” ao longo da adaptação. A começar da transposição de parte do diálogo final de Medéia e Jasão para o início do espetáculo, que parece apresentar, assim, sem sombra de dúvida, uma espécie de desenlace prévio, de síntese global, desdramatizando intenci­onalmente as ações que se seguem, e cujo resultado já se sabe (mesmo sem a “visão do futuro”) de antemão. Como se não bastasse essa ordem inversa, repete-se, em seguida, ainda uma segunda vez, todo o trecho transposto. Repetição que se torna, porém, propositadamente inaudível porque acompanhada pe­los sons dos pés dos coreutas batendo no tablado de madeira, e produzindo um ritmo marcial intenso que abafa o diálogo e as vozes de Medéia e Jasão. A cena auditiva (coral) contrarian­do a situação de disputa interpessoal exposta, no centro do palco, ao público.

E não é só aí que a presença do coro parece se sobrepor à dos personagens individualizados na encenação de Eurípides pelo Teatro do Pequeno Gesto. É o seu movimento constante, são suas passagens pelo círculo maior de madeira, suas apari­ções à beira do círculo, seu deslocamento das alavancas que giram o pequeno tablado interno, seus modos de agrupamento e vocalização que conduzem a cena. Contraria-se, desse modo, explicitamente, a crítica aristotélica de que em Eurípides o coro não atuaria como um dos atores, deixando de funcionar como parte constitutiva do todo e da ação. Assim como o comentário nietzschiano de que, no teatro euripidiano, o coro, “o substrato musical-dionisíaco da tragédia”, se transformaria em “algo aci­dental”, numa simples “reminiscência da origem da tragédia”.

Não se trata, porém, de discutir o uso sem dúvida impor­tantíssimo do coro na Medéia de Eurípides, cabendo a ele a exposição e a interlocução das transformações e reavaliações da protagonista ao longo da peça, assim como a belíssima con­dução do diálogo entre visível e invisível, no momento do as­sassinato (no interior da casa) das crianças, cujos gritos cor­tam o canto coral, parecendo, na verdade, nesse instante, encravar-se nele, como lamento ativo, “presença lancinante da morte no texto euripidiano.

Mas se a ênfase na figuração coral ao longo da encenação da Medéia pelo Teatro do Pequeno Gesto não contraria, em absoluto, a peça, parece indicar, simultaneamente, um outro ponto de distância. Pois não é apenas a visão moderna do trá­gico, em tensão com uma exposição propositadamente historicizada dos corpos e ações dos atores, que impõe uma percepção distanciada à montagem. A onipresença do coro, sobrepondo-se, com freqüência, aos diálogos e disputas entre os protagonistas, parece sugerir que a agonia a que se assiste aí é, na verdade, a da relação dual, da retórica da conversa­ção, da “dialética otimista que supunha que o homem — perso­nagem de teatro — fosse o sujeito atuante da linguagem”. É, pois, para um crepúsculo do “drama dramático”, para um “crepúsculo do diálogo” (para lembrarmos diretamente a re­flexão de Sarrazac), que apontam as indagações sobre a forma trágica, sobre as tensões entre epos e drama, e entre visões conflitantes do trágico, encaminhadas na Medéia do Teatro do Pequeno Gesto.

E não é à toa que se escolhe exatamente Eurípides como ponto de partida para essa figuração agônica do dramático. Aos olhos dos teóricos modernos do trágico (como se assinalou aqui via Nietzsche), atribui-se a ele papel fundamental na dis­solução das funções corais e monológicas do teatro, e na exclu­são gradual dos prólogos e epílogos. Assim como, por outro lado, na instituição da conversação e do conflito como os prin­cípios verdadeiramente constitutivos do dramático. Não é de estranhar, então, que se tenha convertido numa espécie de fonte ancestral para a exigência dialógica que caracterizaria a produção dramática clássica. Não é de estranhar, por outro lado, que, ao encenar sua Medéia, o Teatro do Pequeno Gesto, sobreponha ao conflito central da peça, dois outros.

Um deles, explicitado na fala final do corifeu, contrapon­do Nietzsche e Eurípides, e suas compreensões diversas do trágico. O outro, de presença sinuosa, mas igualmente funda­mental, tensionando, no interior da encenação, dois processos de dissolução. O do modelo esquiliano de tragédia em Eurípides; e o do “drama dramático” no contexto contemporâ­neo. A escolha de Eurípides é, desse ponto de vista, estratégi­ca. Sobretudo pelo seu papel histórico como “lugar” privilegi­ado a partir do qual se tem definido (genealogicamente) o dra­mático como “ação dialogada”.

A encenação de Eurípides pelo Teatro do Pequeno Gesto parece acentuar não uma prefiguração remota dessa poética dual (do diálogo e do conflito), mas, ao contrário, investigar as dobras épicas, redefinir a dimensão trágica e as tensões entre coro e monólogo na Medéia. O retorno a esse momento de dis­solução do trágico esquiliano parecendo apontar, pelo avesso, para a desordem moderna e contemporânea do dramático. O modelo cênico resultante desse cruzamento conflituoso de cri­ses formais e de visões trágicas tão diversas apontando para uma configuração em espelhamento duplo do processo tea­tral. O sentimento trágico moderno em tensão com o mito clás­sico; o modo coral espraiando-se e minando a reivindicação dialógica e as relações duais que costumam guiar as exigênci­as normativas do drama. O moto contínuo dos coreutas inva­dindo espectralmente as cenas de disputa, e desindividualizando-­as; a voz (lírico-meditativa) de Rilke, e a reflexão nietzschiana, colando-se ao desfecho euripidiano, e refigurando-o, interna­mente, via contradição.

“Sua vida se desdobra a partir da morte, que não é o seu fim, mas sua forma”, diz Benjamin do herói trágico. É de modo semelhante que a Medéia do Teatro do Pequeno Gesto investiga o dramático. A partir de uma dupla dissolução: a do trágico, a do drama. O dramático se acha, pois, “rodeado pela morte”. A “ironia trágica” dessa investigação formal residindo no fato de apresentar, propositadamente, as “circunstâncias de sua morte” como se fossem as “de sua vida”. Figurando, no anúncio do drama, o horizonte pós-dramático no qual assis­timos à sua agonia.

  • Flora Süssekind é ensaísta, pesqui­sadora da Casa de Rui Barbosa e professora da Escola de Teatro da Unirio.