Autor: Plínio Marcos

Estreou na Casa Rosa, sendo apresentado também no Sesc de São João de Meriti em 2003. Depois, integrando o Palco Giratório, foi apresentado em Florianópolis (SC), Brasília (DF) e Paranavaí (PR). Integrando a Caravana Funarte, esteve em Campinas (SP) e Friburgo (RJ).

A Casa Rosa era um antigo prostíbulo carioca. Ali, num cômodo que, certamente, já foi testemunha de inúmeros encontros sexuais, um cafetão, uma prostituta e um homossexual mostravam o quanto o limite entre a humanidade e a animalidade é tênue. O público, convidado a entrar nesse quarto, assistia ao embate dessas figuras que se assemelham a dejetos humanos. Reféns de si mesmos, os personagens se relacionavam de forma extremamente violenta a poucos centímetros da plateia.

Nossa Navalha na carne quer “jogar” com o realismo. Quer experimentar a identificação dos atores com os personagens. Quer colocar a plateia muito próxima, dentro da cena, não apenas para que ela se veja como parte daquele mundo, mas para que ela, de certa forma, seja cúmplice da relação que aqueles personagens apresentam em cena.

Elenco:

Helena Varvaki
Alexandre Dantas
Marcos França

Ficha Técnica:

Autor: Plínio Marcos
Direção: Antonio Guedes
Assistente de direção: Joana Lebreiro

Crítica

De escândalo a clássico
Realismo de ‘Navalha na carne’ sobrevive a mais uma montagem
Macksen Luiz
Jornal do Brasil, 07/10/2003

Navalha na carne é um exemplar da dramaturgia de Plínio Marcos que se mantém como um clássico pela crueza dos diálogos desta fatia de realidade, na qual três excluídos vivem um jogo de dominação que reproduz a miséria moral de injustiças sociais que sofrem. A prostituta, o seu protetor e um homossexual dividem o espaço emocional da sua marginalidade no confinamento de um bordel ordinário em que cada um explora o outro, num círculo de medo, desprezo e violência e desesperada solidão.

A permanência desses personagens – escrita em1968, a peça causou escândalo na época – se confirma a cada montagem pelo caráter realista da cena e pela maneira como Plínio Marcos conduz a ação, com veracidade quase naturalista, mas estabelecendo conteúdo dramático bem mais complexo do que a aparência de uma fotografia do real.

Os três personagens assumem posições cambiantes entre si, cada um tendo seu instante de domínio sobre os demais, numa luta de fraquezas que é trazida do campo minado de outras batalhas já perdidas. Sem saída, condenados à solidão e à morte social, simulam, como um pedido final de amor, qualquer um, a derrocada definitiva de suas vidas. Não há melodrama ou pieguice solidária às vítimas, mas um corte de realidade com fundamento dramático.

As dezenas de montagens de Navalha na carne em mais de três décadas, de certo modo anestesiaram a virulência e o impacto do texto, devido a um tratamento que sublinha demais as características dos personagens ou de dramaticidade piedosa, que vitimiza esses mesmos personagens.

A encenação de Antonio Guedes procura se fixar nas características realistas da peça para, através da exploração dessa linha interpretativa, atingir a essência dramática da cena. E a sua perspectiva de direção associa a área da representação ao centro da trama, utilizando a Casa Rosa, antigo bordel na Rua Alice, como ambientação. Ainda que pareça uma ideia fácil, identidade banalizada por semelhanças, a Casa Rosa não se impõe senão como memória cenográfica, impregnada de referências, mas recriada como citação.

O público, de apenas 20 espectadores, distribuído por entre o cenário do quarto – cama, mesa de cabeceira, pia e duas lâmpadas pendentes do teto – se integra à ação, a princípio pela proximidade, que cria vínculo físico à ação, em seguida pela densidade dramática que reflui do ”palco” para a plateia.

Se tudo se passa ao lado, com a respiração dos atores bafejando e o suor respingando nos espectadores, há que encorpar a cena para que não se transforme em demonstração de verdade sensorial. O diretor sustenta o realismo sem maiores apelos a esses contatos viscerais, mas não escapa de escorregões, como uma certa interatividade postiça dos atores que, eventualmente, se dirigem a algum espectador de modo direto. Mas a secura do espetáculo, que se revela quase expositiva de uma situação vivida diante de um grupo, reconfirma as qualidades do texto e, se não chega a revigorá-lo, pelo menos retoma a peça em seus próprios termos.

Alexandre Dantas carrega de ações físicas a violência amedrontada de Vado, numa interpretação que alcança surpreendentes semitons. Marcos França é um Veludo sem se apoiar no patético. Helena Varvakifica um tanto prejudicada em função da sua juventude na envelhecida Neusa Sueli; afinal, há que justificar o realismo na montagem, tão coerentemente explorado pela direção.

Navalha na carne: peça de Plínio Marcos continua atual em montagem do Teatro do Pequeno Gesto
Gente de verdade num drama urbano e demasiadamente humano
Jefferson Lessa
Jornal O Globo, 09/10/2003

No fim de semana passado, chamei um amigo para assistir a “Navalha na carne” comigo, na Casa Rosa. “‘Navalha na carne’? Na Casa Rosa?!?” foi a reação dele, como deve ser a de muita gente por aí. Uma pena, pois a “Navalha na carne” da Casa Rosa merece ser vista e revista. Com urgência.

Para quem não conhece a peça de Plinio Marcos, censuradíssima nos anos 60, um resumo: a prostituta Neusa Sueli (Helena Varvaki, nesta montagem) divide um quartinho sórdido de um hotel idem com seu cafetão, Vado, interpretado por Alexandre Dantas. No hotel trabalha o faxineiro Veludo (Marcos França), gay de carteirinha com direito aos trejeitos e olhares que se esperam de bichinhas na vida e na ficção. O trio se relaciona de forma violenta e, quando a féria da noite anterior desaparece da gaveta onde Neusa Sueli a havia guardado, começam os conflitos. Vado acusa sua “funcionária” de roubo, para descobrir, em seguida, que o culpado era Veludo. Segue-se a pancadaria física e verbal com momentos de muita tensão sexual.

Ex-prostíbulo é local perfeito para a encenação
Ao meu amigo, que acabou não me acompanhando, fica a pergunta: por que não na Casa Rosa? Para quem não conhece o lugar, cabe uma explicação. A Casa Rosa, na Rua Alice, em Laranjeiras, foi um dos prostíbulos mais célebres e longevos do Rio. Depois de um período de decadência ainda hoje aparente, virou casa de festas modernetes.

A “Navalha na carne” em questão é encenada no que deve ter sido um quarto de motorista ou de empregada, transformado em quarto de uma das “meninas” na fase prostíbulo. E ficou perfeito, pois o lugar dá a exata noção de um quarto de hotel decadente, desses que abundam pelo Catete e pelo Centro. Com direito a infiltrações nas paredes e sensação de claustrofobia e abafamento. Os elementos cenográficos (cama, gravuras, velas etc), dispostos de forma inteligente e econômica, parecem que estiveram sempre ali.

O trio de atores também parece que vive mesmo naquele quartinho sórdido de paredes cobertas por infiltrações e restos de antigas demãos de tinta. Alexandre Dantas faz um Vado sensual, safado e mau, sem abusar de olhares e gestos que se esperariam de um cafetão sensual, safado e mau. Helena Varvaki consegue passar o tédio, a tristeza e o cansaço infinitos de sua Neusa Sueli, enquanto Marcos França encarna um Veludo falsinho e dissimulado com grande sutileza.

Expressões de época soam estranhas
A tentação de recorrer à frase-clichê é grande – e vou ceder: “Navalha na carne” continua atual (pronto, falei!). Se estivéssemos nos anos de chumbo, poderíamos dizer “a peça recria, no microcosmo da prostituição, a atmosfera de desconfiança e violência de sua época”. Hoje, o que se vê é o drama demasiadamente humano de tantos Vados, Neusas Suelis e Veludos que sobrevivem largados por aí. E que os anos, de chumbo ou dourados, não erradicaram da paisagem urbana, seja aqui ou em Kuala Lumpur.

O que não permanece atual são algumas expressões usadas pelos personagens (“Eu te manjo” deve soar tão estranho para uma “criança” de 20 anos como prafrentex, por exemplo). Mas isso não tira, de forma alguma, o brilho da montagem, uma pequena joia de concisão e um belo trabalho de equipe do pessoal do Teatro do Pequeno Gesto, dirigido por Antonio Guedes.

Num determinado momento, Neusa Sueli pergunta: “Será que nós somos gente?”. São, sim, Neusa. Demasiadamente, aliás.