Autor: Fernando Pessoa

Estreou no Teatro Duse em 1993 e seguiu, depois, para o Espaço Cultural Sergio Porto. Convidado a se apresentar no Festival de Uberaba em 1994.

Um dos raros textos dramáticos de Fernando Pessoa, O marinheiro fala do sonho e de lugares e vidas imaginadas que se tornam presentes pela força da palavra de quem os cria e de quem ouve falar deles.

Três jovens conversam suavemente. Velam uma moça. A noite custa a passar e as histórias fazem passar o tempo. Imóveis, conversam. Lembram do passado como de uma época feliz. Mas teria sido mesmo assim? Além-mar, um marinheiro perdido constrói para si um novo passado e povoa o silêncio desse encontro. Uma das jovens tece esse relato com sentimentos delicados como os matizes de uma bela e trabalhosa tapeçaria.

Quando raia o dia, as próprias jovens, tomadas pela história que inventaram, percebem-se entre o sonho e a realidade – ficção de si mesmas, ficção que os passos que se ouvem fora daquela sala vêm interromper.

A encenação, investindo na imobilidade das atrizes e no movimento proporcionado pelas imagens das palavras, coloca-as sentadas em cadeiras giratórias que estão sobre um palco também giratório. Assim, a vertigem proporcionada pelo envolvimento que a história cria, adquire concretude no giro que se acentua ou se atenua de acordo com o andamento do espetáculo.

Elenco:

Christine Lopes
Claudia Bernardo / Claudia Ventura / Julia Merquior
Luciana Borghi

Ficha Técnica:

Autor: Fernando Pessoa
Diretor: Antonio Guedes
Adaptação: Antonio Guedes e Fátima Saadi
Dramaturgista: Fátima Saadi
Cenógrafo e Figurinista: Gilson Motta
Iluminador: Antonio Guedes
Design gráfico: Cesar Medeiros
Operação de som: Clarice Saadi

Crítica

O poder mágico das palavras
Lionel Fischer

Tribuna da Imprensa, 21/10/93

Na madrugada de 11 para 12 de outubro de 1913, após infrutíferas tentativas de cair nos braços de Morfeu, Fernando Pessoa finalmente convenceu-se de que não conseguiria dormir. Então, resolveu escrever. Entretanto, desprezando sua especialidade – a poesia – pôs-se a dar forma a uma peça teatral cuja estrutura fugiria por completo da habitualmente utilizada pela esmagadora maioria dos dramaturgos e à qual batizaria de Teatro Estático. O resultado dessa experiência, O marinheiro, pode ser avaliado no Espaço Cultural Sérgio Porto.

“Chamo de teatro estático àquele cujo enredo dramático não constitui ação – isto é, onde as figuras não só não agem, porque nem se deslocam nem dialogam sobre deslocarem-se, mas sequer têm sentidos capazes de produzir uma ação; onde não há conflito nem perfeito enredo. Dir-se-á que isto não é teatro”. De fato, as premissas essenciais do poeta contrariam frontalmente a conceituação clássica do que vem a ser teatro, que pressupõe a evolução da ação dramática como decorrência dos conflitos entre os personagens.

Mas Pessoa acreditava piamente na validade de seu projeto, argumentando que “pode haver revelação de almas sem ação, e pode haver criação de situações de inércia, momentos de alma sem janelas ou portas para a realidade”. Ou seja, o poeta estava convencido de que os personagens poderiam revelar-se muito mais em função das palavras que trocassem do que das ações empreendidas. Estas poderiam ser abolidas, desde que o universo evocado transcendesse o espaço físico da representação.

No caso específico de O marinheiro, estamos diante de três irmãs insones que aguardam a aurora – no original, elas participam do velório de uma menina. Para aplacar a lentidão do tempo, inventam contos, que na verdade traduzem seus sonhos. Um deles fala de um marinheiro que, após escapar a um naufrágio, refugia-se em uma ilha e ali cria para si mesmo um passado absolutamente fictício, apenas para combater a solidão e o ócio.

Fica implícito que, a partir de um determinado momento, o marinheiro não consegue distinguir realidade e sonho. O mesmo se dá com as irmãs, que inventaram o marinheiro e tentam recriar o próprio passado. A irrealidade e a dúvida, portanto, estão na essência da situação proposta por Pessoa. De concreto, apenas o poder mágico das palavras.

Para dar vida à proposta de Pessoa, o encenador Antonio Guedes criou uma dinâmica cênica da mais alta teatralidade. As irmãs, à exceção de um breve momento, estão sempre sentadas em poltronas giratórias, acopladas a uma estrutura que também gira quando os sonhos evocados ganham substância. A ideia visa provocar no espectador a sensação de vertigem, que, embora obtida, teria sido ainda mais contundente se o processo fosse inverso: as atrizes permanecendo estáticas e a platéia girando.

Outro mérito do diretor repousa na forma como conduziu o trabalho do elenco. Coerente com o nome da companhia que lidera – Teatro do Pequeno Gesto – , Guedes persegue a sutileza, a precisão do detalhe, a emoção que pode advir de um simples olhar ou de um discreto movimento de mãos. Tais objetivos foram inteiramente consumados, graças ao talento e inteligência das três intérpretes.

Christine Lopes, cuja personagem evoca o sonho do marinheiro e que por isso tem maior influência do que as demais no desenrolar do espetáculo, tem atuação notável. A atriz mostra-se igualmente brilhante, tanto nos momentos em que a angústia a domina quanto naqueles em que, visceralmente arrebatada pelo sonho, transfigura-se por completo, como se acreditasseem sua materialização. Claudia Ventura, que acreditamos irá tornar-se uma das melhores atrizes deste país, valoriza as componentes fundamentais de seu papel: o otimismo ao qual se mesclam, em doses parecidas, tristeza e ingenuidade. Luciana Borghi defende com sensibilidade o personagem menos interessante, posto que habitado quase que tão somente pelo conformismo.

Quanto à equipe técnica, já mencionamos a interessante estrutura cenográfica, de autoria de Gilson Motta. Ele responde ainda pelos ótimos figurinos, que convertem as personagens em viúvas de si mesmas, pois a vida real é substituída pela sistemática evocação de fatos não vividos. Outro destaque do espetáculo não é perceptível em cena: trata-se do ótimo programa, cuja aquisição (será que ele é gratuito?) torna-se obrigatória, entre alguns motivos pelos excelentes textos assinados pelo diretor e por Fátima Saadi, dramaturgista da montagem.